sexta-feira, 30 de julho de 2010

Ave Palavra - Seleta de textos admiráveis

Texto da crônica intitulada "Sebos", de Fabrício Corsaletti, publicada na Revista São Paulo (18 a 24 de julho de 2010), da Folha:
"Aos 15 anos li o poema 'Motivo', de Cecília Meireles, e decidi que era poeta. Três anos depois vim pra São Paulo porque acreditava que um poeta deveria viver na cidade grande, longe da família e do conforto da casa materna. Meus pais, que são dentistas e talvez desejassem que me tornasse médico, me apoiaram em tudo. Mas no meu último dia em Santo Anastácio minha mãe me chamou num canto e disse:
- Se você quer ser poeta, que seja e boa sorte. Mas fique longe de sebos, meu filho. Esses lugares são antros de poeira e podem acabar com você.
Sofro de asma desde que me conheço por gente, e evitar que eu entre em crise é, até hoje, uma das grandes preocupações da minha mãe. Assim, prometi a ela que só leria livros novos ou semi novos, e na manhã seguinte me mandei pra capital. No rádio da minha cabeça adolescente tocava a canção do Caetano: 'No dia em que eu vim-me embora/ Minha mãe chorava em ai/ Minha irnmã chorava em ui/ E eu nem olhava pra trás'.
Acontece que eu olhava - e não me permitia curtir os sebos de São Paulo, que a essa altura eu já sabia serem muitos, todos eles entupidos de tesouros literários. Nos finais de semana meus amigos de Letras faziam excursões até o Sebo do Messias, no centro da cidade, mas eu não conseguia quebrar a promessa que tinha feito à minha mãe.
Reprimido e infeliz, ia sozinho à extinta livraria Belas Artes, na Paulista, e me sentia meio fora do mundo dos Verdadeiros Leitores.
Uma tarde, voltando da faculdade num ônibus lotado que subia a Teodoro Sampaio na hora do rush, desci três pontos antes do meu e resolvi continuar a pé. Fazia calor, eu estava com fome, minha mochila tinha uma alça mais curta que a outra e incomodava. No entanto, quando li 'SAGARANA - LIVROS USADOS' numa plaquinha sobre uma porta, alguma coisa se agitou dentro de mim, não resisti e entrei. Eu estava lendo Guimarães Rosa nessa época, não lembro se 'Sagarana' ou 'Primeiras Estórias', e é provável que tenha interpretado o letreiro como um sinal do Destino. E era.
Porque lá dentro eu conheci a Ana Lima, uma estudante de Filosofia leitora do João Antônio e Hemingway, interessada em samba de breque e praticante de ioga, que se transformou numa figura fundamental na minha primeira década paulistana. Foi com ela e com outro amigo em comum que aprendi a ver São Paulo não como o borrão escuro contra o qual eu projetava minhas fantasias e depois me frustrava, mas sim como uma sucessão de bairros reais, com ruas reais e bares reais, onde pessoas reais bebiam cervejas reais e conversavam.
Em outras palavras, essa dupla me libertou da minha ingenuidade exagerada e me apresentou um ponto de vista que, em certa medida, me sustenta até hoje.
Naquele dia, ao chegar em casa, meus pulmões começaram a chiar e no meio da noite fui parar no hospital. Fiquei mais de uma semana 'de molho', como diria minha mãe, tomando remédios e pensando na palavra traição Parecia uma palavra terrível, a mais terrível de todas. Mas eu ainda não tinha como compreender o que ela realmente significava."

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